ARTIGO

Obrigado, Marina

Graças à sua reação, Marina permite ao Brasil despertar para a percepção de que o país continua dividido em lugares, sem um espaço comum de democracia para todos

"O olhar do senador para Marina foi herdado dos escravocratas, usado contra o escravizado que ousasse sair do porão do navio negreiro ou entrar na casa grande sem ser uma das mucamas" - (crédito: Maurenilson Freire)

Cristovam Buarque professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

 

O Brasil ficou indignado com o tratamento de alguns senadores à ministra Marina Silva, mas não deveria ter se surpreendido: o ultrajante "ponha-se no seu lugar" é usado há séculos, todos os dias, e nem ao menos percebido, porque faz parte da cultura brasileira — a maneira como a minoria privilegiada trata a maioria excluída dos benefícios do progresso.

O olhar do senador para Marina foi herdado dos escravocratas, usado contra o escravizado que ousasse sair do porão do navio negreiro ou entrar na casa grande sem ser uma das mucamas. O "ponha-se no seu lugar" não é apenas uma fala. Está no olhar do senador, registrado nos vídeos daquele "Dia da Marina". O mesmo olhar como os atuais descendentes-políticos dos escravocratas enxergam os que saem das paradas de ônibus e entram afoitamente nos aeroportos, ou aqueles que vivem em casas sem esgoto, sem água, sem cômodos, e se atrevem a caminhar pelas ruas dos bairros ricos, ando por seus condomínios fechados. É descaradamente usado, e vergonhosamente aceito, sem precisar ser dito, para condenar crianças a escolas sem qualidade, seja por falta de recursos financeiros, seja por excesso de paralisações. Também usado para condenarem à fome, mesmo em um país exportador de comida.

Por mais de 300 anos, os escravizados sabiam qual era o "lugar" que lhes cabia, imposto pelo sistema em que sempre viveram antes e depois de 1888 contra negros ou contra pobres, descendentes-sociais dos escravizados, independentemente da cor da pele. Após a Abolição, para que os descendentes-sociais dos escravizados não ousassem sair do lugar que lhes era determinado a cada um, os descendentes-políticos dos escravocratas aram a negar-lhes educação de qualidade. Mesmo depois da Abolição, a "escola senzala" ou a "escola casa grande" define o lugar de cada um, com cercas invisíveis de uma sociedade dividida, onde o destino é pré-determinado conforme a renda, a cor da pele ou o grau de instrução.

Quando Marina Silva ousa transpor o muro — estuda, se elege senadora e recusa o lugar submisso que lhe foi reservado —, o senador, descendente-político dos escravocratas, usa não apenas seu poder, mas sua cultura atávica para lembrá-la de onde deveria estar. O "ponha-se no seu lugar" não é apenas um grito esporádico de arrogância, grosseria ou misoginia — ele não diria isso a uma colega de sua descendência política. É um comportamento banal de um descendente-político dos escravocratas. Tão banal, que talvez nem ele tenha percebido o absurdo de seu gesto: esperava que ela se calasse, submissa. Mas Marina não se submeteu. Porque tem caráter adquirido na escola e a coragem de enfrentar a banalidade secular com que é tratado o conceito de "ponha-se no seu lugar". Por isso, muito obrigado, Marina, por desnudar como a nossa podre elite descendente-política dos escravocratas se comporta até hoje.

Graças à sua reação, Marina permite ao Brasil despertar para a percepção de que o país continua dividido em lugares, sem um espaço comum de democracia para todos os cidadãos e cidadãs. Falta ainda despertar para o fato de que a derrubada de muros e fronteiras não resulta de novas leis de abolição, mas de uma mudança decisiva que ofereça educação de máxima qualidade a todos. Eliminando a atual divisão da Ágora da democracia brasileira em lugares conforme a escola que o cidadão frequentou.

O Brasil precisa abolir a divisão dos brasileiros em lugares predeterminados conforme sua renda, sua cor. Para tanto, é preciso entender que soltar não é libertar; que a primeira abolição quebrou as algemas, libertou os escravizados, mas, para seus descendentes-sociais serem livres, cada um deles precisa saber para onde quer caminhar ao longo da vida e precisa conhecer o mapa do caminho. Sem destino na mente e sem o mapa nas mãos, o solto continua prisioneiro, o escravo continua escravizado e sujeito ao "ponha-se em seu lugar" se pisar fora dele.

 A escolha do destino e o conhecimento do mapa não vêm de leis de abolição, mas de estratégias educacionais que eliminem a desigualdade entre "escolas senzala" e "escolas casa grande", assegure a mesma qualidade, para formar a todos em democracia, solidariedade, respeito, decência, inclusive aos descendentes-políticos dos escravocratas. A abolição dos lugares pré-determinados requer igualdade plena na qualidade da escola — independentemente da renda e do endereço da criança. Quando todas as escolas tiverem a mesma qualidade, nenhum brasileiro dirá a outro: "ponha-se no seu lugar".

 

Por Opinião
postado em 11/06/2025 06:00
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